Certa vez, quando eu ainda trabalhava no past-up da Folha de São Paulo, pestapando o “Cidade de Santos” (jornal da casa) e vários jornais de terceiros, tive o enorme prazer de conhecer uma senhorinha de quase 80 anos, Dona Diair, que, na época, estava organizando os originais para publicar seu primeiro livro. Encantei-me com a perspicácia daquela senhora. Confesso não me recordar muito bem de sua fisionomia, pois sempre estava atento ao serviço, e não poderia ser diferente, dado o volume de pessoas que circulavam no local apressando os trabalhos.
Quando lhe contei meu amor pelas histórias de nossa cidade, em especial ao bairro do Brás, Dona Diair presenteou-me com uma cópia de um de seus contos, que transcrevo aqui, em alusão ao aniversário de São Paulo.
Piratininga: a lenda
Esta é uma lenda da princesinha Piratininga, que me foi contada por minha professora de primeiras letras, moça sonhadora e sentimental, que tinha a poesia na alma e a tuberculose no peito.
Ouvi-a, quando ainda era menina, crédula, magra, nervosa e irresponsável… E nunca mais pude esquecê-la.
Até hoje, quando a noite é fria e a garoa cai desconsoladamente, as palavras doces voltam a soar dentro do meu coração, como se as pronunciasse aquela mesma voz macia, da moça sentimental e sonhadora… Que morreu tão cedo!…
Todos os espíritos misteriosos, que habitam o Planalto, foram convidados a conhecer a Princesinha Piratininga, na hora em que ela nasceu, ali, no Pátio do Colégio.
O pai, um santo homem de vestes negras, que vivia escrevendo versos na areia, um belo dia cansou da praia, dos rochedos, do mar… E quis brincar de escalar morro…
Sorrateiramente, subiu a serra, pulou o riacho, e, maravilhado, se deparou com a natureza virgem, agreste e arisca.
Amou-a. Desse amor puro, do homem branco pela terra selvagem, nasceu a princesinha de Piratininga.
E os gênios do planalto, convidados a levarem seus dons à princesinha, foram chegando:
Dizia o Vento, cheio de prosa, a agitar-se no arvoredo: serás a poesia, a arte, a inspiração.
A Aurora, vaidosa, ataviada com seu véu de sete cores, murmurava, alvorecendo: terás o esplendor da beleza.
O Dia, jovem petulante, engalanado de sol tropical, bradava, radioso: terás a riqueza que ofusca, a magnificência da generosidade!
A Passarada frenética, em algazarra de bem-te-vis, currupacos e marteladas de ferreiros, repetia em coro: serás a mãe da indústria e do progresso.
A bicharada, em fila, com o tamanduá-bandeira à frente, de braços abertos, vaticinava, solene: serás boa e hospitaleira. Acolherás em teus braços o estrangeiro errante. Em seu ventre generoso caldear-se-ão as raças, para surgir, então, a raça única: forte, nobre, valorosa!
A Noite luxuriante, adornada com o brilho da cruz de cinco estrelas, com raios de luar nos cabelos negros, sussurrou comovida: terás para te servirem os meus negros filhos… Serão escravos da tua vontade, até que um dia tu mesma ordenes que sejam livres!
E o Riacho travesso, rindo e pulando em suas margens plácidas, cantava contente: serás o grito de nacionalidade, que anunciará a independência da terra mãe!
Todos os Gênios falaram… Todos riram…
Depois, todos se foram, e com eles, também a alegria se foi.
A primeira tristeza, em forma de dúvida, no frágil coração da princesinha Piratininga.
A responsabilidade de um futuro tão glorioso enchia-a de ansiedade… Estava só, abandonada. Sentia vontade de chorar…
Tinha receio de não conseguir, sozinha, desincumbir-se de tudo que dela esperavam os Gênios…
Foi, então, que, humilde, pés e braços nus, a tiritar de frio, a Garoinha do Planalto, aproximou-se de mansinho, leve, muito leve, tímida e medrosa.
Calada, contemplou a princesinha Piratininga. Sentiu-lhes os receios, e, como o Gênio bom das Grotas, concedeu-lhe também seu último dom, fez-lhe seu último vaticínio: quando fores princesa grande, quando, ao invés da pequenina Piratininga, fores a Paulicéia Desvairada ou a Cidade que mais Cresce – São Paulo; quando, a par dos teus triunfos, dos teus progressos, dos teus arranha-céus, sentires a violência te agredindo, os favelados, suplicando-lhe auxílio; os pobres, reclamando por hospitais; as crianças, abandonadas pelas ruas, eu virei consolar-te, e, abraçadas, choraremos juntas. Não um choro agudo de protesto, nem de lágrimas abundantes que inundam, nem de gritos que incentivam reações de rebeliões, de greves… Choraremos juntinhas, encolhidas, um choro sem soluços e sem revoltas.
Choraremos lágrimas suaves, frias, sentimentais, sinceras!
Serás São Paulo, a Terra da Garoa!…
A Princesinha Piratininga sorriu agradecida e a Garoinha humilde do Planalto afastou-se, tiritando, pés descalços, triste e sozinha, para o fundo dos grotões, onde vivia.
Cumpriu-se o vaticínio.
Piratininga cresceu, virou Cidade Grande…
E, até hoje, sua fiel amiga, a Garoinha do Planalto, vem às vezes visitá-la, e, abraçadas, envolvem em brumas, em cerração, as tristezas cotidianas que ainda assolam o coração desta menininha.
Autor(a): Pedro Nastri e-mail do autor: p.nastri@yahoo.com.br